A chave de Sarah.

Durante o FestiFrance BH Brasil 2015, no Sesc Palladium, participei do debate com a atriz Natasha Mashkevich sobre o filme Sarah’s Key (A chave de Sarah, 2011), de Gilles Paquet-Brenner, estrelado por Kristin Scott Thomas e premiado nos EUA, na Alemanha e no Japão.

Natasha – que imigrou de seu Quirguistão natal para Israel, depois para a Bélgica e a França, onde se casou com o produtor Roberto de Matos, mineiro radicado em Paris, razão pela qual o português é agora uma das seis línguas que ela domina – faz o papel de Madame Starzynski, a mãe de Sarah.

Foto de Julien Bonet.
Natasha Mashkevich no papel de Madame Starzynski. Foto de Julien Bonet.

A história da chave de Sarah é tão tremenda que duvido que alguém, depois de ver o filme, se esqueça dela até a morte. No debate, Natasha disse que o filme foi bem recebido na França, apesar do tema incômodo da Colaboração.

Observei que embora houvesse muitos filmes sobre o Holocausto, Sarah’s Key era dos primeiros a mostrar de forma realista, com uma reconstituição exata, a deportação dos judeus organizada pela polícia francesa, que aprisionou 76 mil judeus no Velódromo de Inverno em julho de 1942 antes de enviá-los para os campos de concentração nazistas.

No debate, observei que a recusa da França em assumir o passado colaboracionista, escancarado pela primeira vez em Le Chagrin et la Pitié (A dor e a piedade, 1969), de Marcel Ophüls, substituída na cultura francesa do pós-guerra pela memória seletiva de exaltação à Resistência, ligava-se a dois fatores.

Primeiro, à vergonha de milhões de franceses terem sido dominados durante a Ocupação por apenas alguns milhares de alemães. Segundo, à tradição do antissemitismo francês, que vem da Idade Média, passa pelo caso Dreyfus e pela Colaboração, e permanece forte até hoje.

Há quem negue haver antissemitismo hoje na França. Mas basta lembrarmos de Alain Soral e Dieudonné – processados e condenados em seu país por antissemitismo – e as passeatas contra Israel onde se proferiram gritos de “judeus para as câmaras de gás”, para entendermos porque muitos judeus franceses estão atualmente deixando o país.

Quando fui visitar o Memorial da Shoah em Paris, meio perdido nas paralelas do Sena, pedi informações a uma francesa esclarecida, que estranhou o nome do museu, e depois, ao ver o mapa que eu trazia, disse: “Ah, é o Memorial da Guerra, eles o chamam de Memorial da Shoah, mas para nós é o Memorial da Guerra.”

O antissemitismo francês atual manifesta-se nessas sutilezas. Outro exemplo: os acadêmicos franceses celebram em peso um escritor medíocre, colaboracionista, notoriamente antissemita: Céline. Suas obras foram há tempos imortalizadas pela Pléiade. Já a grande escritora Simone de Beauvoir ainda não foi posta nesse cume.

Segundo Pierre-André Taguieff em La nouvelle judéophobie (A nova judeufobia, 2002), a nova judeufobia manifesta-se mais violentamente entre os imigrantes das ex-colônias que aderiram à radicalização político-religiosa. Mas eles encontraram incentivo e solidariedade junto aos novos movimentos antiglobalização.

Franceses já são os filhos dos imigrantes nascidos na França que manifestam antijudaísmo; e os nativos de velha cepa apropriam-se indiretamente da nova judeufobia através da  palestinofilia contagiante e do antirracismo focado apenas na islamofobia e que mantém, assim, a boa consciência dos militantes.

Após o debate conversei com a bela e simpaticíssima Natasha, que me disse que tinha escrito um roteiro e desejava dirigi-lo. Perguntei sobre a história e ela me revelou apenas que girava em torno de dois temas: a escolha e o abandono. Mais ela não podia dizer… Pedi-lhe, claro, um autógrafo para a minha coleção.

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No dia seguinte assisti à peça Nossa Senhora do Perpétuo Donuts, um monólogo de Jordan Beswick, com Natasha Mashkevich encarnando a personagem real Edna Howard, uma mulher comum que tinha tudo para ser deprimida, infeliz e até se matar, mas que escolheu ser alegre, feliz, e viver sem remoer o passado.

Estuprada noite após noite pelo pai, com a cumplicidade da mãe e dos dois irmãos, que fingiam nada saber do que ocorria, teve forças de fugir de casa para se casar com seu “príncipe encantado”, que logo se revelou um alcóolatra, que a surrava dia sim dia não.

A maternidade e os filhos eram o refúgio de Edna, até que, esgotada, disse ao marido que, se ele não mudasse, o abandonaria. O machista psicopata então quase a matou de pancadas. Foi quando Edna decidiu procurar um advogado e conseguiu o divórcio.

Liberta do jugo do marido, obteve dele sua loja de donuts, mas sem capital e estoque nem o serviço de limpeza, antes feito pela “namorada” dele, quase teve que fechar as portas. Ela confessa então seu maior pecado: apesar de tudo o havia sofrido, deixou os filhos com os pais, esperando que nada lhes acontecesse, mesmo sabendo o que poderia acontecer-lhes.

Os pais de Edna revelaram-se, contudo, bons avós e se redimiram pelo amor aos netos. Edna acabou por perdoá-los – era a sua natureza não guardar rancores. Além disso, quando ela mais precisou, o pai foi à sua loja e fez todos os reparos necessários para que Edna pudesse mantê-la aberta e sobrevivesse.

Os filhos também ajudaram Edna a levar adiante os negócios. A personagem narra esses tenebrosos episódios de sua vida durante a cerimônia em que recebe do Prefeito da cidade uma placa em sua homenagem, por ter abrigado vinte crianças maltratadas e abandonadas.

Natasha Mashkevich interpreta Edna com um sorriso permanente nos lábios, passando por cima dos horrores sem ser marcada por eles, feliz por viver cada novo dia. Um momento mágico do monólogo agridoce, e que bem o resume, é quando ela dança para sufocar uma má lembrança, Rock And Roll Waltz (1954).

Nossa Senhora do Perpétuo Donuts. Foto de Thomas Nguyenvan.
Natasha Mashkevich em Nossa Senhora do Perpétuo Donuts. Foto de Thomas Nguyenvan.

Nossa Senhora do Perpétuo Donuts.

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2 comentários sobre “ENCONTRO COM NATASHA MASHKEVICH

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